"Como Orson Welles fez o cinema mudar"
Com décadas de atraso, chega ao Brasil livro que inaugurou estudos sobre o cineasta
americano
POR ALEXANDRE AGABITI FERNANDEZ

ORSON WELLESAndré Bazin, Jorge Zahar Editor, 196 págs., R$ 29,50

A partir dos primeiros anos da década de 1950, uma certa crítica francesa, agrupada nas páginas à época amarelas da revista Cahiers du cinéma, começou a reabilitar o cinema americano, dando envergadura autoral a alguns de seus diretores. Cineastas em geral integrados às engrenagens do modo de produção hollywoodiano, ao cinema de divertimento - como Alfred Hitchcock, Haward Hawks, Douglas Sirk, Erich von Stroheim - foram legitimados culturalmente e tratados como criadores - em pé de igualdade com escritores e pintores. Louvava-se neles a capacidade de expressão de um universo pessoal, apesar das inúmeras restrições impostas pela indústria em praticamente todas as etapas da criação e da produção cinematográficas. Essa capacidade estava menos na temática do que na forma, na Mise-en-scène, aspecto pouco desenvolvido pela crítica da época, que começou a ser explorado. Em fevereiro de 1955 surgia a expressão "política dos autores", cavalo de batalha dos jovens críticos da revista, como Jean-Luc Godard, François Truffaut e Jacques Rivette, que não tardariam em rodar seus primeiros longas-metragens.
Ao lado de Jacques Doniol-Valcroze, André Bazin (1915-1958) fundara os Cahiers em 1951. Um ano antes havia publicado um livro sobre Orson Welles (1918-1985), obra considerada como antevisão da "política dos autores", apesar de Welles nunca ter sido um cineasta afeito aos rígidos padrões da produção industrial. Suas relações com Hollywood foram conturbadas desde sua estréia no cinema, com Cidadão Kane (1941), filme que marcou os cinéfilos franceses assim que foi lançado em Paris, em 1946. Bazin morreu logo depois de preparar a segunda edição da obra, acrescida de análises dos filmes rodados pelo diretor americano durante os anos 1950, além de duas longas entrevistas realizadas em 1958. É este livro pioneiro nos estudos wellesianos, enriquecido pelo longo prefácio escrito por Truffaut em 1978 para a edição americana, que o leitor brasileiro tem agora em mãos, com décadas de atraso.
Em 1950, Bazin saudou Welles como um dos mais inventivos diretores do pósguerra. Foi o primeiro a perceber que a modernidade de seu cinema residia no fato de colocar o espectador em um novo lugar, de convidá-lo a participar do processo de criação de sentido do filme. Bazin analisa minuciosamente o papel das técnicas empregadas pelo cineasta americano, como o uso da lente grande-angular, que oferece um campo visual maior, com mais profundidade de campo; os enquadramentos em câmera baixa; os cenários com teto; os longos planos-seqüência; a relação direta entre atores e cenário. A discussão desses procedimentos que dão corpo à Mise-enscène - muitos deles praticados no período do cinema mudo e colocados de lado com o advento do filme sonoro - deixa claro que "a técnica não é apenas uma outra maneira de pôr em cena, ela põe em causa a própria natureza da narrativa", intuição que mudou o modo de pensar o cinema.
O cineasta, em cena do filme Cidadão Kane, sua estréia no cinema
Às certezas da decupagem clássica, Welles opõe as dúvidas do plano-seqüência. Em nome da univocidade e da verossimilhança, a decupagem clássica decompõe o relato em uma série de planos capazes de conduzir a atenção do espectador para este ou aquele aspecto que se deseja realçar. O planoseqüência é uma linguagem sintética que mantém a continuidade espaço-temporal, preserva o trabalho do ator, recusa julgamentos e maniqueísmos, oferecendo o que o crítico francês chamou de "ambivalência ontológica da realidade". No plano-seqüência, o espectador é obrigado a usar sua liberdade e inteligência para deduzir relações implícitas (entre os personagens, destes com o cenário ou com o relato), participando assim da elaboração do sentido do filme. Na decupagem clássica essas relações nada têm de implícitas. São exibidas na tela "como peças de um motor desmontado" graças à multiplicação de planos - convenção que dirige a atenção do espectador e faz desaparecer contradições que poderiam "perturbar" o sentido que se procura afirmar, fundando um modelo de fruição cinematográfica bem pouco exigente. Essas concepções são magistralmente expostas nas análises da cena da tentativa de suicídio de Susan em Cidadão Kane e da cena da cozinha de Soberba (1942), que são o ponto alto do livro e se tornaram paradigmáticas.
A partir desse conjunto de idéias, Bazin analisou aspectos de outros expoentes do cinema moderno, como o neo-realismo italiano, filmes de Jean Renoir, Roberto Rossellini, Jacques Tati, Akira Kurosawa, Luis Buñuel. E sem dúvida alguma nutriu o cinema de Jean-Luc Godard, que não viveu para conhecer, talvez o que mais abertamente cultiva a dúvida e a multiplicidade de sentidos, o mais radicalmente moderno no sentido baziniano.
ANDRE BAZIN nasceu em Angers, na França, em 1918. Teórico e crítico de cinema, fundou o Cahiers do cinéma, em 1951, ao lado de Jacques Doniol-Valcroze e Lo Duca. Um dos pensadores da nouvelle vague, era amigo pessoal de cineastas como Godard, Truffaut, Bresson, Buñuel, Carné e Cocteau. Morreu em 1958."

1 comentários:

Vivi - adorei a roupa e o perfume de quinta, na universidade. Precisa nos dar este presente mais vezes. Ainda mais para mim que nunca tinha pensado nisso antes...